Mulheres que não sabem chorar, de Lilian Farias

Há livros com histórias para sonhar, outros em que buscamos escape para a monotonia da vida; há os que nos são para estudo e também temos os que são lidos por puro e simples entretenimento, sem culpa como deve ser para qualquer leitor. Toda leitura é uma leitura, mas nem toda leitura tem efeito sobre nós. Um bom livro tem essa capacidade de nos surpreender, vêm na surdina e no fim nos deixa ecoando reflexões sobre um ponto que antes não estava ali.

É o caso de 'Mulheres que não sabem chorar', da autora sergipana Lilian Farias, obra que traz protagonistas femininas emaranhadas numa rede de conflitos presentes na vida de uma boa parte das mulheres, seja a vulnerabilidade diante do machismo enraizado que as obrigam a ser de um jeito, nem sempre de acordo com seus desejos de se sentirem livres, seguras, o medo de ser violadas na rua, a busca em ter seus prazeres satisfeitos - além de apenas satisfazer passivamente -, em meio ao resultado das situações que lhes caíram decorrentes disso e da suas condições enquanto mulheres, as tornando vítimas desse ciclo que lutam para romper.

Não tive mãe, minha mãe não teve mãe e nem a mãe dela. Socialmente, as mães são para os filhos ou ninguém. Evidente que existem exceções. As mulheres são educadas para reproduzirem, não para serem mães, caso desejem. Suas filhas também precisam reproduzir e só! O instinto animal de ensinar a se proteger foi rotulado como errôneo e no lugar adotado o ensinamento do medo. E desse trajeto cruel e castrador sobraram poucas oportunidades. Aceitar e viver cordialmente como reprodutora silenciada ou ignorar e queimar na fogueira. Certa vez, li sobre a história das pérolas. Senti alívio. (p. 59)

O livro abre em 2044 com uma narradora do futuro que precisa relatar a história de três mulheres que, como muitas, foram perseguidas, passaram por dores e sofrimentos. 

Marisa tem 55 anos de idade, metódica e de personalidade forte, teve  uma juventude conturbada e já vivenciou muito ao longo de sua trajetória. Empresaria de sucesso e dona de uma floricultura, a morte do marido não impediu de continuar a criar o casal de filhos para que fossem os melhores da turma.

Ana, apesar de seus 30 anos, resolveu ingressar na faculdade de serviço social tardiamente pelos conflitos que sofreu em casa por ser lésbica e ter pais conversadores, principalmente o seu pai sinônimo de bruto e desafetuoso. Por conta da péssima convivência, ela teve que sair de casa para não mais ter notícias, porém, seu irmão no leito de hospital a faz revisitar o seu passado uma vez que se importa com o ente, o qual também não tem culpa dos genitores que possui Numa das idas ao hospital, acaba se deparando com uma mulher atraente e misteriosa, começaria ali um relacionamento?

Por fim temos também Olga, uma mulher de 50 anos que está elaborando o luto de enterrar um filha jovem com uma vida inteira pela frente. O marido a deixou. Pra enfrentar as lamurias de sua existência, ela tem na embriaguez uma forma de se sentir ausente desse mundo tão injusto e que a rejeitou de tantas formas, em suas palavras: "Eu bebo para esquecer; esquecer aqueles que me esqueceram, esquecer da dor de ser esquecida. Sempre tive muito medo... aos poucos, desejei esquecer." (p. 47). Para respeitar o último desejo da filha, ela tem tentado abandonar o vício.

São, além de outras personagens, três mulheres com vivências nada fáceis que em algum ponto têm suas existências cruzadas, não só pelas violências que sofreram, mas também por descobrirem no afeto uma forma de dar continuidade, de forma menos dura, as suas vidas, algo chamado de sororidade, a união entre mulheres. 

Lilian Farias faz um trabalho de colcha de retalhos para contar essa história. Os enredos que a principio não têm ligação vão, como numa borra de café derramado, se espalhando até deixar o branco coberto de marrom, revelando que está tudo interligado. Essa forma de narrar, aguça o desejo investigativo de descobrir mais sobre essas vivências. E somos banhados com personagens aprofundados e bem descritos.

Isso porque há alguns alívios que só as mulheres podem sentir. Algumas cargas, só as mulheres compreendem. E quando uma mulher chora aliviada, o universo também sente. Outras mulheres também sentem. (p. 184)

Em contrapartida, vale salientar, não é uma leitura fácil, uma vez que a autora não guarda pudores ou aversão para escrever a vida como ela é. Cabe atenção ao leitor acerca de temas que para alguns podem ser gatilhos, afinal são sensíveis como violência contra mulheres, a exemplo, mas não só, do estupro, que infelizmente está longe de ser um assunto findado em nossa sociedade. Entrementes, são temas que fazem parte da construção de enredo, nesse quesito podemos dizer que a autora "não dá pontos em nó", estão inseridos ali por uma finalidade maior e levanta questões sobre o tema além de unicamente inquieta o leitor. Nem tudo na vida são flores, diferente dos títulos dos capítulos batizados com espécies diferentes de flores (ao final a autora traz o significado de cada uma, inspirada na autora Vanessa Diffenbaugh).

'Mulheres que não sabem chorar' é um livro sobre amor entre iguais, sobre a violência em sua sociedade machista e principalmente a linha tênue entre o que somos e o que nos deixamos nos tornar. Nos mostra que processar as dores, nossos sentimentos e principalmente nossos defeitos com cautela, nos ajuda também a cuidar do outro. Como bem descreve nossa narradora, é preciso lidar com nossos espinhos como as rosas.

Ficha técnica: 

Título: Mulheres que não sabem chorar | Autora: Lilian Farias | Editora: Giz Editorial | Edição: 1 | Ano: 2021| Gênero: Romance brasileiro contemporâneo | Páginas: 210 | ISBN: 9788582700655

Resenha de número: 445


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6 Comentários

  1. O trabalho de Lilian sempre é tocante, e o Mulheres é especial principalmente por serem pessoas reais. Toca-nos a angústia, o sofrimento dessas mulheres que não têm tempo para chorar, porém também nos inspira a determinação, força e renascimento delas. Parabéns, pela resenha e para a Lilian por se dedicar a temas crus e necessários. Abraços.

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  2. Gosto muito quando o livro consegue me surpreender e ainda deixa reflexões rondando a minha mente, mesmo após a leitura. Fiquei intrigada pra ler "Mulheres que não sabem chorar". Muito bom, embora não seja uma leitura fácil, pois, curto desafios.

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  3. Eu também li e a violência é tão nua e crua, e ela é jogada na nossa cara que não tem como não sofrermos (ao menos um pouquinho) com tudo que lemos. Porque sabemos que algumas coisas de verdade acontecem, seja o preconceito e violência contra mulheres. São tantas coisas violentas (tanto física quanto psicológica) que doem ler, que eu confesso ter demorado um pouco para terminar de ler o livro.

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  4. Adorei o post e a forma como você expôs os temas, e as protagonistas. Sua descrição, corroborando com a narrativa, traz grande interesse à obra. E acho que posts assim são ótimos para ajudar os autores nacionais a terem mais visibilidade. Porque dá pra perceber que o livro realmente falou com você.
    Abraços

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  5. Oi, tudo bem? Que edição mais bonita, gosto muito quando o livro vem com marcador. Quanto a proposta da autora achei bem interessante. Mencionar colcha de retalhos é a expressão que mais se encaixa nos relatos das personagens. Dessa maneira a autora traz vivências diferentes e profundas e muitas mulheres se sentem representadas. Um abraço, Érika =^.^=

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  6. Oi, Pedro!
    Primeiro, feliz aniversário. Segundo, estou profundamente feliz com essa resenha sensível e bem escrita, para quem escreve, é sempre um presente.

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