Como se fosse um monstro, de Fabiane Guimarães

Se conseguisse dar nome aos próprios sentimentos, poderia ter chorado. Mas ainda não era essa pessoa. Ainda nem sabia sofrer.”

Com seu gravador, bloco de notas e várias perguntas a serem respondidas, a jornalista de origem argentina Gabriela Suertegaray segue em busca de preencher uma pauta sobre o escândalo na década de 90 envolvendo barriga de aluguel e contrabando de bebês. 

É com essa motivação jornalística que a jovem então se encontra com a personagem principal da pauta: Damiana, uma mulher madura, de criação simples, humilde e que desde cedo foi trabalhar para uma família de classe alta como empregada doméstica a fim de contribuir na renda de casa. Mensalmente, com a ajuda de sua prima Rose, praticamente todo o dinheiro ganho era enviado para o interior. 

“— Tudo que eu queria, depois de mocinha, era ser alguém — Damiana confessou, dando um gole no café. — Alguém que tivesse as coisas, sabe.” 

Como as condições financeiras não eram muito boas na época, Damiana recebe uma proposta invasiva: gerar um filho para os patrões em troca de uma quantia considerada de dinheiro. Com a expectativa de mudança de vida, é então que ela aceita, mas sem entender bem todos os trâmites desse processo que é gerar uma vida e logo em seguida ter que ceder a outros. 

Acompanhamos então, por meio das informações coletadas por Gabriela, os sentimentos e o relato das gestações que Damiana passou e um sistema mafioso de contrabando internacional de bebês financiado por gente extremamente rica, além de um afeto no meio do seu percurso de ser um transporte para outros. 

'Como se fosse um monstro', segundo romance de Fabiane Guimarães que a editora Alfagura lança, é um livro sobre as oportunidades que a vida oferece e também nos mostra que as circunstâncias de uma vivência, seu contexto social e cultural moldam as escolhas que, na maioria das vezes, são tomadas pelo impulso da necessidade, seja financeira ou de afirmação pessoal. 

Damiana, apesar de no presente narrado ser uma personagem adulta, a princípio ela foi de muita ingenuidade, encantada com o novo, com as perspectivas que o dinheiro traz e a possibilidade de viver com qualidade de vida, nos fazendo refletir sobre o peso da maternidade; para algumas mulheres trata-se de uma graça divina, embora para outras um fardo a ser carregado sem apego emocional e o que chamam de instinto materno. No caso de Damiana um imbróglio que ao passar, apesar dos estragos de ter um corpo como incubadora, trata as bênçãos que o dinheiro compra. 

Fotos retiradas do Instagram da Editora Alfaguara

Além disso, o poder que muito dinheiro traz para alguns. Homens com suas necessidades de validação masculina, a frequente sensação de acharem que podem tudo apenas sacudindo um talão de cheque branco para aqueles necessitados como um adestrador oferecendo petiscos ao seu cãozinho. 

A obra é enxuta, sem grandes rodeios ou proximidades com ritmo e fluidez agradável. A autora entrega aos poucos detalhes que vão moldando no leitor que pode ter uma visão do desfecho final antes do tempo, porém, traz uma informação que complementa a reflexão sobre maternidade. 

(...) como esconder a própria vergonha de ter se partido em duas, sem se despedir da outra metade.

Uma obra para se atentar à nova literatura contemporânea brasileira e para acompanhar a evolução da Fabiane Guimarães desde 'Apague a luz se for chorar', podendo interessar aos leitores de 'Os sete maridos de Evelyn Hugo' (Taylor Jenkins Reid, Ed. Paralela, 2019), por trazerem a relação envolvendo jornalista e fonte, mesmo que tenham contextos extremamente distintos, aqui bem mais do anonimato e a pobreza.

~º~º~º~º~º~º~º~

Ficha técnica: 

Título: Como se fosse um monstro | Autor: Fabiane Guimarães | Editora: Alfaguara| Edição: 1 | Ano: 2023| Gênero: Romance brasileiro | Páginas: 160| ISBN: 9788556521668
Resenha de número: 449

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6 Comentários

  1. Olá,
    Li o livro anterior e tinha gostado, e pelo jeito este está melhor ainda. Gosto da história ser mais direta, enrolação é desnecessária e em breve também lerei!

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  2. Pedro, não conhecia o livro até acompanhar suas redes sociais, vi no seu stories e estava ansiosa pela resenha, que particularmente gostei muito. Nunca li nada da autora e fiquei bem empolgada com algumas características que li na resenha sobre Damiana.

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  3. Olá. Acho leituras assim bem fortes e importantes pra literatura brasileira
    contemporânea também por mostrar um contexto social e cultural das
    experiências da personagem. Realmente, maternidade precisa ser uma escolha.
    Eu, por exemplo, jamais sujeitaria o meu corpo a ser uma incubadora pra
    homem nenhum por dinheiro, muito menos de graças. Mas cada mulher escolhe o
    que faz com o próprio corpo e a própria vida. Muitas não tem nessa
    oportunidade de escolha pelas baixas condições sociais...Quem colhe as
    consequências depois é só a gente. Eu me sentiria usada.

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  4. Nossa, que resenha forte. Creio que pelo tema que mexe bastante comigo. Não sei se eu conseguiria gerar uma vida, e abdicar dela em seguida. Seja por amor, amizade, dinheiro, pena...
    Eu amo o ato de maternar. E não sou iludida com aquele amor de mãe sobrenatural ou extremamente incondicional.
    Vejo isso tudo como uma relação. E ela se desenvolve e fica enorme. Então acredito que não conseguiria viver pensando em alguém que eu gerei, mas não terei no meu dia a dia.
    Achei tocante o primeiro quote. É isso! As vezes por muito desejar, pelo simples fato de não ter, a gente se mete em algumas confusões.
    Grande abraço.

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  5. Oi Pedro, tudo bem? Faz pouco tempo que comecei a ler os livros desse selo e tenho gostado bastante pela diversidade de autores e histórias. Quanto ao tema me chamou bastante a atenção. Pelo fato de ser mulher não consigo me imaginar gerando filho para outras pessoas, ainda mais sabendo que não teremos mais contato. Creio que a relação sentimental com o bebê é muito forte para apenas entregá-lo após o nascimento. É um misto de sentimentos. Fiquei curiosa em ler. Um abraço, Érika =^.^=

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  6. Oi Pedro, tudo bem? Faz pouco tempo que comecei a ler os livros desse selo e tenho gostado bastante pela diversidade de autores e histórias. Quanto ao tema me chamou bastante a atenção. Pelo fato de ser mulher não consigo me imaginar gerando filho para outras pessoas, ainda mais sabendo que não teremos mais contato. Creio que a relação sentimental com o bebê é muito forte para apenas entregá-lo após o nascimento. É um misto de sentimentos. Fiquei curiosa em ler. Um abraço, Érika =^.^=

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