Chuva de papel, de Martha Batalha

"Chuva de Papel" é o terceiro e mais recente romance da carioca Martha Batalha, autora já conhecida pelo seu primeiro trabalho chamado 'A vida invisível de Eurídice Gusmão', de 2016, que ganhou as telonas com Fernanda Montenegro no elenco. Com o pensamento de que a autora escreve muito do que conhece, mesmo subconsciente, aqui ela se volta para um tema familiar no sentido profissional de escrita e jornalística.



Em meio a pandemia, a obra traz como protagonista Joel Nascimento, um homem que muito jovem se envolveu com o jornalismo; como aprendiz, descobriu os macetes, jargões e a reportar as matérias policiais interessantes mais para o seu público instigado pela afirmação de mostrar o lado real do Rio de Janeiro. Foram anos escrevendo reportagens sensacionalistas, daquelas conhecidas como cabidela que deixa escorrer sangue pelas páginas. Boêmio, Joel aproveitou o melhor da cidade, casou algumas vezes, mas se encontra num estado decadente na terceira idade: alcoólatra, sem rendimentos financeiros e se escondendo das obrigações de pai, como pagamento de pensão.


Após uma tentativa falhada de suicídio, ele sofre algumas fraturas e precisará residir de favor na casa da tia de um antigo amigo de redação. Joel que tem suas idiossincrasias, conhece Glória, a dona do lar e que bate de frente com a rabugice do seu novo inquilino. Ela possui o sonho de escrever um livro de memórias, que já está em andamento. Os novos dias na casa passam-se com a chegada de Aracy, vizinha e melhor amiga de Glória, uma viúva que adora misticismo e os seus dois cachorros chihuahua.

De forma intercalada, numa narrativa que vai de primeira a terceira pessoa, a autora reconstrói a história de suas personagens num fluxo temporal de idas e voltas. É interessante acompanhar, em tão poucas páginas, a construção dessas histórias de vidas, suas origens e relações familiares que as trouxeram até aqui. Vemos todo o conservadorismo  do passado, o papel delegado às mulheres de submissão para atender as demandas do marido em detrimento de seus reais desejos e o momento de ruptura quando há o despertar para si mesma.

Eu tinha acabado de inventar o feminismo. Que era a minha voz e o meu desejo, e as minhas possibilidades, que eram poucas mas eram. O meu feminismo, como um desenho que só eu podia fazer, uma receita que teria exatamente o meu tempero. Sozinha na sala, eu me senti parte de algo maior, ao me dar conta da injustiça da invenção, porque, naquele momento, e antes, e depois, outras mulheres que viviam para dentro dessas janelas vistas do pátio, em torno da pracinha Xavier de Brito e da Afonso Pena, no corredor de prédios da Conde de Bonfim e além, nos mercados, pontos de ônibus e nas feiras, todas essas mulheres tinham inventado, estavam inventando ou iriam inventar o feminismo. E me pareceu errada a perda de tempo e de energia, a perda de vida, mesmo, numa invenção que se dava de novo e de novo, e ainda mais errado ser esse o final feliz, porque tantas outras, a maioria, eu me dei conta, passariam pelo mundo sem saber dessa voz, ou com uma vaga noção de que existia, mas sem poder experimentá-la, como um bem. Não é a coisa mais triste que pode acontecer a uma pessoa?


A princípio também conhecemos a evolução do jornalismo sensacionalista, os métodos de apuração corruptos de alguns repórteres que interferiam nas cenas dos crimes para fazer vender jornal, o auge e a crise do jornal impresso com a chegada do digital e as demissões por fim dos periódicos. Histórias que se interligam com personalidades reais, como é o caso do Assis Chateaubriand (resenha aqui) que, apesar do grande nome e seu conglomerado das comunicações, tinha suas atuações antiéticas na profissão.

Ele não se lembrava. De mais outro caso. A única forma de se manter como repórter de cotidiano é simplificar o que a cidade despeja. Tragédias ganhavam a relevância do momento, mas eram esquecidas e substituídas sucessivamente por casos similares. Joel havia posto uma única face nas crianças mortas por bala perdida, nas vítimas dos sequestros-relâmpago, nos trabalhadores desaparecidos após uma blitz. Uma única face, em todas as mulheres que se repetiam em situações de violência. A narrativa de uma cidade engessada por problemas recorrentes é feita de clichês, o Rio havia se tornado um pastiche de si mesmo.


Este é um livro que aborda temas tabus, principalmente o suicídio que aqui não deu muito certo, também foca muito no luto, histórias de mortes que esses personagens guardam em comum. A filha de Glória, o esposo de Aracy, o pai de Joel ainda na sua frente quando criança... Mas não chega a ser uma obra de sofrimento, pelo contrário, há um tom cômico que desfoca a lamúria. Desses sofrimentos, vemos personagens se aproximando, mesmo que contra suas vontades, mostrando ser possível ir se apegando a outras coisas para seguir em frente, até mesmo quando parece estar tudo perdido, e do fundo do poço achar a história que levará a enxergar motivações suficientes, quem sabe até financeiras, para não desistir.


~º~º~º~º~º~º~º~

Ficha técnica: 

Título: Chuva de Papel | Autor: Martha Batalha | Editora: Companha das Letras | Edição: 1 | Ano: 2023| Gênero: Romance brasileiro | Páginas: 224 | ISBN: 9786559215003
Resenha de número: 450

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5 Comentários

  1. Achei super diferente essa miscelânea de histórias e personagens. Deve ser uma leitura muito agradável! Eu gosto desse tipo de literatura que trata das vivências e demais coisas do dia-a-dia.
    Abraço

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  2. Oi Pedro, tudo bem? Vi alguns comentários sobre esse lançamento e fiquei bem curiosa principalmente pelo sucesso do livro anterior. Ainda não vi o filme, mas já coloquei na minha lista (enorme por sinal rs). Interessante acompanhar a evolução do jornalismo e também o papel da mulher na sociedade e no casamento. Meus pais são um tanto conservadores, então sei um pouco como é. Um abraço, Érika =^.^=

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  3. Oi Pedro, tudo bem? Vi alguns comentários sobre esse lançamento e fiquei bem curiosa principalmente pelo sucesso do livro anterior. Ainda não vi o filme, mas já coloquei na minha lista (enorme por sinal rs). Interessante acompanhar a evolução do jornalismo e também o papel da mulher na sociedade e no casamento. Meus pais são um tanto conservadores, então sei um pouco como é. Um abraço, Érika =^.^=

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  4. Oi, tudo bem?
    Preciso confessar que só conheci a autora quando vi a divulgação desse lançamento. Vi poucos comentários sobre o livro até agora, mas todos positivos. Achei a premissa e os temas que o livro traz interessantes, e fiquei curiosa também pelo fato de trazer um pouco sobre a evolução do jornalismo sensacionalista. Já vou adicionar esse livro e procurar saber um pouco sobre o outro da autora, pois já me interessei em assistir à adaptação.
    Beijos!

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  5. Olá,
    Pela sua resenha o ambiente do livro parece muito com os livros anteriores, o que é interessante para quem quer continuar no mesmo clima que aquele. Já ia comentar que a capa não combina com o livro quando você mencionou que não é um livro triste hehehe. Fiquei interessada na história!

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