Céus e Terra, de Franklin Carvalho

Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance em 2016, Céus e Terra é uma obra escrita pelo autor baiano Franklin Carvalho que navega por três mortes no ano de 1974; a de um menino, um lavrador e um cigano. Na introdução ainda é relatado que haverá um caso de desaparecimento, mas, como narrado, "desaparecimento não é morte", não havendo mais dores nesse sentido ao fim da leitura.


O menino que encontramos aqui se chama Galego, tem doze anos e é filho de família pobre que, acidentalmente, logo nas primeiras páginas do romance, tem sua cabeça decapitada quando dá de encontro com o cigano que foi crucificado. É a partir de então que Galego, em sua condição de fantasma, navega por esse vilarejo do sertão, passando a acompanhar as famílias, suas perdas e ganhos, as transformações do lugar e as diversões pela chegado do circo.

Estava muito sozinho e sem saber ainda qualquer coisa sobre o meu destino, meu futuro, sem outra pessoa para me escorar, sem perdão nem elogio, estava nu e com frio. Parecia aqueles meninos amarelos e catarrentos que zanzam pelas ruas sem banho e sem educação, mas mesmo eles as mães vinham buscá-los vez em quando, são lembrados pelas famílias. Eu, não, vivia inchado de sereno e se tivesse sangue até piolhos viriam me consumir. (p. 34)

Filho de família humilde, vemos como essa condição é fundamental para que o menino Galego, desde cedo, fosse um faz tudo para a família da madrinha com seus cinco filhos em troca de um prato de comida. Limpar penicos, tirar e carregar água de poço, ariar panelas, ordenhar gado, consertar poleiros eram algumas de suas atividades rotineiras, quando no principio tinha sido "acolhido" com a promessa de receber o mesmo tratamento dos filhos da madrinha. 

Com alguns acontecimentos "milagrosos", os moradores locais associam um salvamento como intervenção divina do garoto, a quem, alguns, passam a fazer orações e pedidos. Mas como um menino do sertão, sem bem saber de sua condição de morto, sem nem ao menos ter conseguido escapar da própria morte, poderia ajudar as preces que ouve?


Céus e Terra é um livro extremamente bem escrito, por um autor que já tem segurança e habilidade sobre seu oficio. Sua narrativa, em primeira pessoa, sob o aspecto de um menino, convence o leitor que segue acompanhando através de seu olhar onipresente os acontecimentos que nos são não apenas relatados, mas observados com a curiosidade de alguém que apesar de morto, ainda está aprendendo o que é a vida. É suave e interessante como ele vai pulando de uma família à outra, envolvendo aspectos do regionalismo com valores culturais e sociais da região nordeste, e vamos seguindo como se estivéssemos em viagem no mesmo o pau de arara.

As personagens de Céus e Terra são pessoas simples, comuns em seus desejos de estarem onde estão. Homens com sonhos de possuir carro e emprego decente. Aprendendo a domar os animais e as artes de cultivar a terra. E mulheres que não querem ser mal faladas, buscam casamento e vivem suas funções de esposas, continuando na condição mesmo quando enviúvam. Pessoas que trocam favores para satisfazer suas necessidades, sejam carência de afeto, sexual ou alimentar a fome para a sobrevivência.

Ao longo dos anos, dona Amélia, solitária, já de cabelos brancos, acabaria retendo a essência, o peixe no espelho: as mulheres são solitárias. As mulheres estão tão condenadas à solidão que, sendo grande o número de mulheres, parece que há ainda um número maior de solitárias. Onde há mulheres famintas, a solidão é maior que a fome, onde há mulheres dolorosas, a solidão é maior que a dor, e onde há delas desesperadas ou alegres, há mais solidão do que mulheres rindo. (p. 191)

Como bem sabemos ao inicio da leitura, a obra vai falar de morte (intrinsecamente ligada com religião), essa que poderíamos chamar de entidade, causadora de medo, motivo de inúmeras perguntas, muitas delas nunca respondidas. Mas muito longe de cair num lugar comum de um sofrimento lamurioso, porque para aquelas criaturas que praticamente quase não possuem nome, o esquecimento é sempre mais ligeiro, sua ausência em essência enquanto pessoa humana só é sentida na condição de sua função, o quanto era útil, enquanto nos afetos, bem... é outra história.

'Todas as identidades se perdem, e não há dor nenhuma nisso, porque também a morte é esquecida. E também some desse mundo, como todo dia somem coisas enormes e desaparecem pessoas numa quantidade que escandalizaria até os mais céticos, se alguém soubesse como calcular." p. 205

Franklin Carvalho escreveu um belo romance, lírico, poético e digno do prêmio que recebeu, condensando grandes questionamentos universais num pequeno vilarejo sertanejo. Certamente, um autor para acompanhar.

x~x~x~x~x~x~x~x


Ficha técnica: 

Título: Céus e Terra | Autor: Franklin Carvalho | Editora: Record | Edição: 1 | Ano: 2016 | Gênero: Romance brasileiro | Páginas: 208 | ISBN: 9788501107732
Resenha de número: 447

Postar um comentário

0 Comentários