Você se empenharia por anos ao extremo para participar de uma competição que exige treinos rigorosos, onde o prêmio não é dinheiro nem viagem, mas um troféu confeccionado por um artista local e que, caso venha a ganhar, nunca mais se apresentará novamente em competições do gênero?
Num pequeno município da província de Córdova, com não mais que seis mil habitantes, a quinhentos quilômetros de Buenos Aires, acontece anualmente o Festival de Malambo de Laborde, uma competição de dança tradicional que atrai participantes da região em busca de alcançar o primeiro lugar. O prêmio está longe de ter valor financeiro, mas o prestigio de conseguir o grande feito e ser respeitado pelos demais do povoado e região, já que o festival não tem a intenção de ser globalmente difundido e nem perder as suas raízes tradicionais.
Em 'Uma História Simples', a jornalista argentina Leila Guerriero, pouco depois de ler um artigo sobre o evento, se deslocou para o município a fim de conhecer e reportar o festival no ano de 2011. É a partir dessa viagem que ela não só conhece mais sobre o funcionamento da dança, como nos apresenta de perto os anseios de Rodolfo González Alcántara, um dos participantes que busca a alcunha de ser o vencedor do festival que dura seis dias. Através do enfoque nesse homem, compreendemos as privações que o Malambo exige, ao que se abre mão para se dedicar exaustivamente a treinos pesados e o valor imaterial que a vitória traz.
O Malambo é uma dança típica gaúcha de sapateado surgida por volta de 1600 e que segue batidas rítmicas dos pés dentro de uma determinada métrica musical. Estritamente masculino, os jovens treinam desde criança para chegar ao festival solista, são anos de empenho, treinos pesados que trará a gloria de ser um vencedor de Malambo. Muitas das vezes esses jovens sofrem lesões graves nos pés, devido aos esforços constantes repetindo 10, 11, 12 sequencias da coreografia que será apresentada durante o evento. A jornalista ao questionar um dos participantes se vale a pena se machucar tanto, ele retruca com: "— É que o que se sente aí em cima é único. É como uma eletricidade. Tornei a me apresentar em 2010 e passei para a nal. E foi aí que dancei o melhor malambo da minha vida. Quando desci, estava cego. Soube que tinha feito o malambo como nunca. Fiquei como se estivesse em choque. E ganhei. Quando voltei para a minha cidade, como campeão, os vizinhos estavam me esperando na estrada e me seguiram numa caravana por vinte quilômetros." A dança exige passos repetitivos que exigem concentração, coordenação motora e muito condicionamento físico para aguentar o tempo de apresentação que dura de quatro a cinco minutos.
— Ser campeão em Laborde tem valor para um círculo muito pequeno de pessoas, mas para nós signica a glória. No ano em que somos campeões, pedem-nos fotos, entrevistas, autógrafos. E depende de nós aproveitar a oportunidade, porque depois não vamos mais usar as nossas pernas. Quando as pernas se acabarem, teremos de usar outras ferramentas. Laborde nos dá a possibilidade de sermos alguém de fato. E não o cara que ganhou para conquistar, nem para levar o mundo à frente, mas para demonstrar que, trabalhando em silêncio, com humildade, tudo é possível. Por isso, gostaria que Deus me desse a felicidade de ser maduro, de ser um homem, para chegar a Laborde bem e depois largar tudo. Laborde me conquistou desde que pus o primeiro pé no palco. E se Deus quiser que isso, que é o máximo, leve embora a nossa carreira, tudo bem. Nos dá o máximo e leva tudo embora. Mas não é que eu queira ser campeão para garantir o meu futuro nanceiro ou aparecer num cartaz. Quero ser campeão porque desde os 12 anos quero ser campeão, e encerrar a minha carreira aqui seria maravilhoso. p. 64
Apesar do festival relatado se passar na Argentina, outros países como Brasil e Uruguai herdaram essas tradições de dança, claro com suas diversificações. Os dançarinos usam indumentárias especificas, nas palavras de Leila Guerriero: "No estilo do Sul, o gaúcho usa chapéu-coco ou galera, camisa branca, gravata-borboleta, colete, paletó curto, um cribo — calça branca larga, com bordados e franjas na barra — sobre o qual se coloca um poncho com franjas — chiripá —, preso à cintura, uma rastra — um cinturão largo com adornos de metal ou prata — e botas de potro, uma espécie de capa de couro muito na que se ajusta aos tornozelos com tentos e cobre somente a parte traseira dos pés, que batem quase nus no chão. No estilo do Norte, o gaúcho usa camisa, lenço no pescoço, paletó, bombachas — calça muito larga e plissada — e botas de couro de cano alto." (p.10).
Portanto, percebemos se tratar de um festival em que os envolvidos dão importância e respeitam a tradição, a sua pátria e a bandeira tal qual buscam alcançar atributos gaúchos de austeridade, coragem, altivez, sinceridade, franqueza, além de serem fortes para enfrentar as pancadas que virão. Esforços esses muito valorizados pelos locais. No fim, a competição trata-se também de uma perspectiva de mudança na vida desses homens comuns, de famílias carentes, uma vez que se tornarão treinadores de jovens futuros competidores. O que nos traz uma reflexão sobre as histórias que lemos e aquele velho clichê de que a verdadeira felicidade está nas coisas simples da vida. Mas não só isso, pois quando eles passam a se tornar treinadores estão não somente adquirindo uma forma de ganhar a vida, mas também dando manutenção a sua cultura, cultivando a devoção ao Malambo.
De leitura curta, mas muito enriquecedora, "Uma história simples" é um livro que nos faz enxergar um pequeno recorte da diversidade cultural que o nosso planeta apresenta e que foge aos nossos olhos por não estarem presentes na grande mídia. Apesar de ser um livro reportagem, Leila Guerriero consegue manter uma escrita ágil, longe de engessa, e uma visão aguçada para capturar o essencial na hora de contar uma boa história, mesmo que seus personagens, a primeira camada, sejam pessoas simples no cotidiano e que, talvez por esse fato, não estejam nos grandes palcos da mídia. E para isso, fica a reflexão, o questionamento: "Interessa-nos ler histórias de gente como Rodolfo? Gente que acredita que a família é uma coisa boa, que a bondade e Deus existem? Interessa-nos a pobreza quando não é a miséria extrema, quando não rima com violência, quando está isenta da brutalidade com que gostamos de identificá-la e de ler sobre ela?" p.54
Não sei para vocês, mas a mim interessa, me interessa muito!
10 Comentários
Pedro, eu acho obras como essa de uma riqueza sem medidas. É muito importante que conheçamos um pouco mais dessa diversidade cultural, e quando "respinga" em nosso país fica ainda mais saboroso lermos histórias como a de Rodolfo que demonstra através de seu relato e vivências a força cultural dessa dança tradicional e única. Foi ótimo ver seu parecer sobre esse livro.
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirEu nunca imaginaria que tinha um livro com este tema, leio poucos livros jornalísticos (o qual imagino que seja esse), mas gosto bastante. Não entendo nada da dança, mas eu acho que iria me divertir lendo o livro por curiosidade.
Nossa, eu não conhecia essa obra ainda. Mas eu achei muito interessante, pois tem até valor histórico e cultural de nossas tradições e arte. Isso fora a história de vida das pessoas, que muitas vezes seriam nem lembradas. Adorei!
ResponderExcluirBjks!
Mundinho da Hanna
livros reportagens eu amo, o último que li quase me fez chorar, o bom desse que ele investe em trazer essa diversidade, singularidade que de certa forma acaba fazendo parte da nossa cultura nem que seja só em pequenos pontos né.
ResponderExcluirPedro, esse parece ser um daqueles livros que a gente termina e guarda ele para sempre. Confesso que estou amando poder ler livros que trazem uma bagagem cultural um pouco maior e esse com certeza eu vou guardar! Obrigada pela indicação!
ResponderExcluirOlá, tudo bem?
ResponderExcluirAinda não conhecia a obra, mas achei interessante por trazer um relato de uma tradição histórica sobre a qual nunca ouvi falar. Sempre acho interessante conhecer culturas e tradições diferentes e acho que isso mostra o quanto o vivemos em um mundo diverso e rico, cheio de particularidades que tornam cada lugar especial. Adorei a indicação e vou adicionar na minha lista.
Beijos
Oi, tudo bem? Não conheço a autora mas achei incrível a proposta dela. A literatura tem esse poder, de nos fazer conhecer outras culturas, outros costumes, e ampliar nossa visão de mundo. Já fui para a Argentina mas ainda não conheci Buenos Aires, é meu sonho. Agora fiquei mais curiosa ainda. Um abraço, Érika =^.^=
ResponderExcluirOlá, tudo bem? Nossa, um livro reportagem! Tem tempos que não leio um do estilo (conheci mais na época da faculdade), mas adorei a dica até pela temática. Sou muito fã de descobertas sobre a nossa cultura, a cultura latinoamericana, e tenho a sensação que terei uma ótima experiência lendo o título. Com certeza dica anotada!
ResponderExcluirBeijos
Olá, Pedro! Achei o titulo do livro muito interessante e curti mais ainda quando li sua resenha. É algo um pouco diferente de tudo o que já li e, no inicio, achei que era um eredo inventado. Muito bacana poder conhecer culturas e entender os motivos que movem as pessoas!
ResponderExcluirUm.abraço!
Esses livros que abrem as portas de culturas distintas tem um valor sobremaneira! Achei interessante o ânimo da escritora em se deslocar e ir a fundo!! Eu que não danço nem Pintinho Amarelinho, fico só imaginando algo tão tradicional. Parece ser uma leitura riquíssima.
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário!