Uma vida pequena, de Hanya Yanagihara

 Este é um livro que contém gatilhos de suicídio, automutilação, estupro, pedofilia e drogas.


Publicado em 2015, Uma vida pequena é um longo romance que, apesar de seu tamanho, se tornou um best-seller. Sendo o segundo romance escrito por Hanya Yanagihara, o livro foi finalista do Man Booker Prize e do National Book Award, também ganhou o Kirkus Prize de 2015. O sucesso é tanto que foi eleito como um dos 100 livros do século XXI pelo jornal britânico The Guardian em 2019.


Em seu enredo, encontramos, a princípio, com um grupo de quatro amigos que se conhecem ainda na universidade, lidando com as trivialidades da vida adulta e a busca pelo sucesso de suas carreiras profissionais na cidade de Nova York. 

São eles:

Malcom Irvine, o arquiteto filho de uma família judia rica e incerto sobre as escolhas que fez em relação a sua profissão sob a pressão de não ter sido a melhor escolha. 

Jean-Baptiste Marion (JB) descendente de haitianos, gay e pintor em busca de ascensão na carreira artistica. Ele trabalha como recepcionista em uma revista de arte no centro e espera um dia ser reconhecido pela mesma não como funcionário, mas um artista de renome.

Willem Ragnarsson, um charmoso aspirante a ator de origem sueca que trabalha como garçom.

Jude St. Francis, advogado e matemático que foi abandonado ainda bebê em uma sacola de lixo, cheia de cascas de ovo, alfaces velhos e macarrão estragado e criado por monges. 

Claro que outros personagens importantes veem a aparecer, mas esse último é o centro gravitacional da amizade e de todo o romance. É ele também quem nos leva aos temas principais do livro: como traumas causados na infância de um homem repercutem em toda a sua trajetória de vida, o seu modo de viver e se expôr para outras pessoas, além de seu psicológico e a relação consigo mesmo.


Judy, apesar de ser o centro, nunca se refere às suas origens, nunca toca em seu passado ou compartilha memórias de sua infância e juventude. O que seus amigos sabem é o básico, embora desconfiem e o questionem, ele sempre dá um jeito de se esquivar das perguntas numa tentativa de esquecer o que lhe aconteceu, como se nunca tivesse existido e dessa forma atenuasse as dores que carrega. Algo que, infelizmente, sempre volta a escoar em sua memória, lhe lembrando o quanto ele é impuro, indigno das amizades que possui e até de sua vida. Mesmo assim, as poucas informações não impediram que seus amigos o enxergasse com bons olhos: uma pessoa inteligente e companheira como ele é e demonstra ser, mas que esconde algo pesado de seu passado.

Para entendermos melhor o personagem, a autora utiliza-se de uma narrativa fragmentada com flashs que nos transportam para os traumas mais infelizes que aconteceram na vida do pobre Judy. Idas e vindas que expõem aos poucos dores que se estendem para nós meros leitores. 

É extremamente difícil ler este livro de forma continua. Não pelo seu tamanho. É que em alguns momentos necessitamos parar para recuperar o fôlego e dar prosseguimento às cenas mais pesadas e tristes, sendo essas brutais demais e  difíceis de digerir, de aceitar sem se sentir inútil diante dos fatos. O que se torna inevitável caso queiramos terminar o livro. Nem sempre as descrições são ricas em detalhes, uma vez que até para o próprio personagem central é difícil reviver o passado. Em sua maioria, a autora aborda de forma mais implícita e cabe a imaginação do leitor complementar o que ela nos entrega, o que, de certa forma, não se torna menos dolorido de lido... Podendo ser visualizado até com mais nitidez, dependendo de sua imaginação.


O livro é um poço de coisas ruim acontecendo em basicamente 99%. A parte nomeada como "Os anos felizes" chega a ser ínfima diante do resto. Uma felicidade envolta de sofrimentos que superam as poucas alegrias. A todo instante torcemos para uma melhora e que Judy encontre uma saída eficaz para o buraco em que se encontra. O que, ao longo da leitura, parece nunca ter solução. Embora seja amado e viva rodeado de pessoas boas, ele não consegue confiar completamente e acredita que vai ser traído a qualquer momento, da mesma maneira que acha não merece esse cuidado que as pessoas têm com ele. "Medo e ódio, medo e ódio: muitas vezes aquelas pareciam ser as únicas características suas. Medo de todo mundo; ódio de si mesmo." (p. 128). Trata-se de um estado frustante para o leitor que, infelizmente mais uma vez, não vê progresso num personagem teimoso que teve a infância acabada em decorrência de abusos sexuais, violências físicas e psicológicas. Sentimos empatia, mas também uma mistura de angustia e raiva por não vermos melhoras.

"Mas o que era felicidade se não uma extravagância, um estado impossível de se manter, em parte por ser tão difícil de ser articulada? Não se lembra de ser capaz de definir o que era felicidade durante a infância: havia apenas tristeza, ou medo, e a ausência da tristeza ou do medo, e este último estado era tudo que ele sempre quisera ou de que precisara." p. 100-101

A linguagem de Hanya Yanagihara é fácil e acessível, mas não deixa de ser forte e poderosa, com descrições muito boas acerca dos ambientes, personagens e seus sentimentos. Sua narrativa segue em terceira pessoa, mas também abre espaço para que o personagem Harold, ex-professor de Judy e que lhe adota no futuro, tome as rédeas de alguns capítulos em segunda pessoa, numa perspectiva mais intimista sobre o seu relacionamento com o futuro filho, sendo essa opção adotada pela autora de modo compreensível dado o contexto final da obra.

O personagem que ganha destaque se chama Willem. Ele é paciente e encantador. É através do Willem que percebemos a beleza da amizade e o peso de seu papel. E nos questionamos em relação as nossas próprias amizades, como estamos nos doando ou deixando de nos doar ao amigos queridos? Será suficiente?

"A amizade era testemunhar o lento gotejar de tristezas, as longas crises de tédio e os triunfos ocasionais do outro. Era sentir-se honrado pelo privilégio de estar presente durante os momentos mais sombrios de outra pessoa e saber que você também podia ter seus momentos sombrios perto dela." (p. 248)

Vemos a amizade dos dois se estreitar cada vez mais, até se tornar algo mais íntimo, uma relação de afeto, cuidado e amor. Willem passa a se dedicar exaustivamente para com o amigo, às vezes até abrindo mão de compromissos profissionais importantes, e nesse processo se percebe apaixonado. Mas levar adiante tais sentimento pode colocar em jogo tanto a amizade quanto abrir novas feridas em Judy, caso não haja os devidos cuidados. 

"[...] como ajudar alguém que não quer ser ajudado enquanto sabe que, se não tentar ajudar, você não estará sendo um bom amigo? Converse comigo, sentia vontade de gritar para Judy às vezes. Me conte alguma coisa. Me diga o que preciso fazer para que você se abra para mim." (p.252)

De fato, não é uma leitura para qualquer pessoa. É angustiante e de um desgaste emocional descomunal. Então por que ler um livro que só tem sofrimento? A obra traz um pouco daquilo que a gente já sabe: a vida não é fácil e pode ser cruel. Os amigos entram em nossa vida e têm a capacidade de amenizar nossa solidão e até curar ou fazer tornar melhor nossa  existência. E mais do que isso, Uma vida pequena nos mostra uma mente doente lutando consigo mesmo contra seus traumas para continuar sobrevivendo quando seu corpo se nega a continuar e vozes em sua cabeça pedem por um fim que parece ser a única solução possível. Mas será mesmo?

Como um fã de melodrama, ao saber do tema de Uma vida pequena e os sentimentos tristes que ele aborda, fiquei curioso para saber se realmente iria me afetar. Ao finalizar a leitura, perdi as vezes de quantas vezes estava em prantos e me deparei  com o coração dilacerado, bem como a autora descreve em uma das passagens do livro:
[...] perder o fôlego; parece que seu coração é feito de algo mole e frio, como carne moída, e está sendo espremido dentro de um punho, o que faz alguns pedaços caírem, esparramando-se pelo chão próximo aos seus pés. Sente uma tontura abrupta." (p. 738)

Por isso, para quem for se enveredar por este romance, é recomendável se preparar psicologicamente para o peso, tanto em tamanho quanto em temática.

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Ficha técnica: 

Título: Uma vida pequena | Autora: Hanya Yanagihara |  Editora: Grupo Editoral Record | Tradução: Roberto Muggiati| Título original: A little life (2015) | Edição: 1 | Ano: 2016 | Gênero: Romance americano | Páginas: 783 | ISBN: 978-85-01-07154-5
Resenha de número: 436

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