Sangrem os porcos, depenem os frangos, de Ivandro Menezes

 Publicado em meados de 2018 pela editora Moinhos, Sangrem os porcos, dependem os frangos é o livro de estreia do autor paraibano Ivandro Menezes. Trata-se de uma coletânea contendo quinze contos que abordam de forma direta os pormenores de uma sociedade com valores ironicamente contraditórios.



No principio é o conto que abre o livro, onde, através de uma narrativa breve e alusiva a criação bíblica do mundo, somo apresentados a uma conjuntura ideológica de justiça totalmente deturpada, em que o agir de Deus é na realidade uma vontade humana. Há então uma inquietação do homem em ir aos extremos para conseguir o que seria para ele a justiça. Vemos nesse principio a base de algo que já começou de forma errada, dando a margem que prepara o leitor para as histórias que se seguem.

Às vezes fingimos inconsciência para evitar os impactos que esse mundo pode nos causar. Com Adelaide, do conto Felizes para sempre, não é diferente. Ela busca na literatura, bem como Madame Bovary, clássico do realismo do autor francês Gustave Flaubert, os heróis, os amores e a promessa de felicidade eterna, coisas que nunca alcançou. No sexo encontrou uma forma de ensinar aos homens "mancebos" como amar, mas será possível ensinar sentimento singelo a homens tão brutos? Quando a compreensão de si se faz presente já é tarde e a autonomia de um corpo marginalizado se mostra no conto como um templo aberto a qualquer um que queira invadi-lo, obter para si e dele fazer o que bem entender. Bem dosado e pensando, o conto é dos mais tristes e revoltantes do livro.


Revoltante também é o diálogo entre autoridades policiais em Calango, texto iniciado com a incerteza fingida do não saber e finalizado com a nunca existência da conversa sobre o desaparecimento de um traficante e a atuação da policia. Apesar do "bandido também tem direitos, pô", o que vemos é um retrato do abuso de poder justificado pela errônea interpretação da vontade de um povo que "tá cansado", afinal, "a voz do povo é a voz de Deus". Mas como bem lembra um dos personagens: "É uma inversão muito séria de valores, doutor".

Frágeis tentativas de alcançar o ar é o peso de uma traição dentro de relacionamento longo e desgastado pelos pequenos rancores do dia a dia guardados e nunca resolvidos. Apesar de ser um conto trágico, a forma com que o autor descreve as cenas é muito bonita, mesmo em poucas páginas, traz pormenores que preenchem a imaginação do leitor e oferece um background em torno das personagens.

Jacarés banguelas não assobiam canções de amor, com esse título inusitado, intercala pensamentos de uma mulher madura e casada com o depoimento de um rapaz, ambos vivendo um caso amoroso. De um lado mutia experiencia, do outro pouca, mas que, por já ter nascido numa sociedade onde o machismo é enraizado, entende o corpo feminino como propriedade masculina, pessoal e intransferível. E isso ainda é visto como demonstração de proteção e até amor. Não é preciso ir muito longe para encontrar tantas histórias reais como essa, basta ligar a TV em algum jornal sensacionalista que o sangue começa a escorrer do aparelho televiso. Infelizmente é a partir de enredos como esse que enxergamos o quão doentios são pensamentos desse gênero.

O tema de violência domestica volta no conto Não passa esse batom vermelho, onde mulheres violentadas ganham força e tomam atitudes. Em menos de duas páginas, Ivando Menezes nos conta a história de quatro mulheres, e através dessas pessoas distintas as ligam pela misoginia. 

Tom tom musical, Canção é a história de um casal finalmente conseguindo obter a paz de um dia tranquilo sem o aperreio das crianças, sem as obrigações da vida familiar. Um dia totalmente dedicado ao casal. Enquanto leitores, somos embalados por essa plenitude em torno de um dia dedicado totalmente ao casal, com direito a banho e jantar especial, numa falsa normalidade que esconde o caos.

Tres meia zero é como a Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade: Um personagem liga-se ao outro. A começar pelo suicídio de uma jovem, passando pelos efeitos e consequências de seu ato em pessoas a sua volta. O texto vai ganhando profundidade a medida em que a narrativa vai revelando novos personagens, como uma boneca matrioska, nesse processo de abri-las e depois fechá-las.

Para vidas simples. conto melancólico sobre uma criança que viveu dois extremos: a felicidade da sorte grande e a consequência da ganancia humana em cima disso. Mesmo com tanta atrocidade, o globo do bingo continua a sortear novos e novos números. O destaque está na fragilidade do personagem principal, o qual lembra a vivencia de Macabéa, a nordestina do livro A hora da Estrela, de Clarice Lispector.

Em Rebelião, uma mulher relata a trajetória de sua vida e o machismo levou a morte do pai. Mais uma vez o tema retorna a coletânea, porém, apresentado sob o ponto de vista feminino, como sendo, em muitos dos casos, as primeiras lembranças ruins de inúmeras mulheres. A linguagem do autor nesse texto é coloquial, carregada de sotaque e da experiência de uma mulher que não seguiu adiante nos estudos. Tudo se segue num paragrafo único. Essa linguagem adotada aqui chega a ser tão bonita  e capta tanto a essência que se propõem que se torna natural se encontrar lendo-o em voz alta.

O impacto da morte de um filho é o mote para refletirmos sobre conjugalidade, maternidade e paternidade no conto Manequim. Algumas famílias tendem a se dissipar quando isso acontece, o luto é demasiado, tornando o sofrimento uma eternidade ("80% dos casais separam-se após a perda de um filho ou filha." - p. 37). Narrando esses acontecimentos está o fantasma da criança, ainda inquieto por saber do espaço vazio deixado em sua casa. Para o pai a superação se parece mais fluida, é só focar no trabalho, mas e para a mãe, sinônimo de amor incondicional e que abdicou de muito em nome do filho?
As mães não esquecem. Não podem e não devem vencer o luto. Se voltar a sorrir, precisam deixar vestígios de que a dor persiste. Como pode uma boa mãe esquecer o filho que morreu? Como deixar para trás a existência do sagrado fruto do ventre? Mães que esquecem os filhos são malditas. São piores que as que os descartam numa lata de lixo. Apagar o luto, enterrar o filho, não é a mesma coisa? Mães precisam morrer antes de seus filhos ou morrer junto com eles? P. 48 

No Fogo santo a vingança do homem mais uma vez é atribuída como a justiça Deus. O conto é narrado como uma fofoca tipica de cidades pequenas e toca em pontos delicados, como igreja e o acobertamento de comportamentos que seriam pecaminosos, exemplo do adultério.

Ao relembrar da infância, o narrador de Já te disse que mamãe era sádica?, conta os momentos de violências sofridos pela genitora e o prazer que a mesma sentia em castigar seus filhos. As mães nunca esquecem...

Assim como o bullying sofrido na infância, tema do conto Topo Gigio, em que o narrador relembra infortúnios vividos por conta de seu biotipo. A vida tem dessas coisas, apesar de parecerem pequenos, certos acontecimentos comprometem e acabam modificando a nossa experiencia nesse mundo, e por mais que seja irrelevante par alguns, carregamos essas marcas com muita nitidez. Por rancor? Não sambemos bem, fato é que no caso desse conto, o protagonista conseguiu deixar um desses momentos marcados em um de seus algozes.


O sentimento que fecha o livro é agridoce com O homem faz o que é preciso. Além de retratar um cenário de desemprego, crise financeira e um  pais desgovernado, o personagem central toma uma atitude que para ele e o amigo é vista como extrema, entrementes, para outros é a unica opção possível para se ter o pão de cada dia. Agridoce porque certas cenas chegam a ser cômicas, porém, o peso e a tristeza do texto é tamanha que o abraço final é sentido na alma.


Ivandro Menezes capturou em Sangrem os porcos, dependem os frangos um retrato fidedigno do que se vive no presente, tudo é ficção e ao mesmo tempo tem todos os elementos possíveis para não o ser. Em seus textos não nos são poupados detalhes e muito menos pudores; sentimos o metálico do sangue na boca, o arrepio na espinha, a formação da lagrima no olho e saímos desse livro de certa forma assombrado pelos caminhos percorridos ao longo das narrativas. E não é toda obra que possui esse poder.

Resenhado por:
Pedro Silva

Ficha técnica:


Resultado de imagem para Sangrem os porcos, depenem os frangosTítulo: Sangrem os porcos, depenem os frangos 
Autor: Ivandro Menezes
Editora: Moinhos
Edição: 1 
Ano: 2018 
ISBN: 978-85-45557-35-7
Gênero: Contos / literatura brasileira 
Páginas: 68
Resenha de número: 429

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