Qual a sua relação com o lugar onde você vive?
Lygia Bojunga, com sua escrita cativante e envolvente, nos leva ao passado de sua infância para nos contar como se deu seu relacionamento com a cidade do Rio de Janeiro. Muito cedo, aos seis anos, na cidade natal de Pelotas, Rio Grande do Sul, a autora ouviu pela primeira vez, com a chegada da empregada domestica Maria da Anunciação, sobre um lugar em que o sol reinava, havia mar, carnaval, morros e um Cristo que guardava a cidade do alto. Maria anunciava tão bem a Cidade Maravilhosa que a menina começou a se encantar, muito antes de conhecer pessoalmente.
Muitos anos se passaram, a criança cresceu e foi cursar faculdade na cidade encantada. Ao chegar lá, Bojunga se deparou com as lindezas, se apaixonou mais ainda e criou uma relação intrínseca com o Rio. Tudo era novidade e em meio a fantasia das descobertas, as dificuldades, como é de se esperar, foram emergindo. Uma das principais foi o crescimento da violência e o encarceramento, muito sentidos pela autora. Nesse ínterim, inevitavelmente, houve uma ruptura entre moradora e cidade, fazendo com que a inquilina fosse buscar abrigo não só fora do Rio de Janeiro, como também do país.
"É, eu também acho, fui ficando meio chata com essa história de viver reclamando. E o pior a que foi justo num tempo em que se via por toda parte o slogan "ama-me ou deixa-me". Lembra desse anúncio que não sei quem andou inventando, e que pegou de um jeito que até você andou anunciando? Você quis até me convencer, naquelas brigas que a gente tinha, que o anúncio era legal. E, pior! aproveitou a onda do anúncio pra me fazer sentir que, se eu não estava mais te amando, eu tinha mais era que ir embora. Ah! eu fiquei danada da vida. Claro, ue! Danada de ver você pensando que eu ia engolir aquela pilula: acreditar que amar é perder o direito de reclamar, de criticar, de me opor ao objeto amado. Eu, heim? Então pra te amar eu tinha que ter sangue de barata? Virar cordeirinho? aceitar, de boca fechada, todos os teus desmandos?" p. 36
Em tom de conversa, tratando o Rio de Janeiro como um interlocutor, um amigo intimo, a narrativa vai sendo delicadamente desenvolvida com momentos de estima, desencanto, e revolta. Mas também, nessas palavras, enxergamos principalmente o amor infindável pela terra em que as raízes foram fincadas. E uma vez estruturadas debaixo da terra, romper essa relação essencial é dificultosa, dolorosa e por vezes impossível. E nem sempre esse rompimento se dá por querer nosso, são fatores externos que também modificam nossas vivencias e permanências... e aí vem o processo migratório. No entanto, o chamado, mesmo que inaudível, nos traz de volta às nossas origens; se não estamos lá em estado físico, estamos em pensamentos, cheiros, imagens e lembranças: é a chamada Saudade que insiste em bater.
De forma muito lúdica e apaixonada, a partir de seu olhar pessoal, vamos entendendo melhor os motivos de tamanho encantamento pelo Rio de Janeiro e também como essa relação foi fundamental para tornar a autora quem ela é, trazendo o seu eu à tona. Da mesmo forma, nos pomos a refletir sobre a relação que estamos construindo com os nossos próprios lugares e o que levaremos disso para nossa formação pessoal. Nada em nossas vidas é à toa e tudo influência.
A leitura, como qualquer livro da autora, é um deleite. Fluida e muito fácil de entendimento. Apesar de ser um livro curto, é rico em memórias, afetos e escrito pelas mãos de uma autora que sabe lidar muito bem com as palavras. Além disso, acompanha lindas ilustrações do plástico brasileiro Roberto Magalhães.
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Ficha técnica:
Título: O Rio e Eu
Autora: Lygia BojungaEditora: Salamandra
Edição: 1
Ano: 1999
ISBN: 85-281-0339-0
Gênero: Memórias / literatura brasileira
Páginas: 72
Resenha de número: 430
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