Escrevendo Histórias: Gael Rodrigues, meio bode e meio homem.



Gael Rodrigues, 32 anos, é natural da cidade de Itabaiana, município do semiárido paraibano com aproximadamente 24 mil habitantes espalhados por 219 km². Formado em direito, atualmente vive em São Paulo onde atua como servidor público desde os 22 anos. Por um tempo esqueceu do sonho infantil de ser escritor. Ele acredita que "sonhos de criança são normalmente deixados de lado porque aos poucos deixamos de ser o que somos para ser o que o mundo exige", mas foi após um ataque de pânico que Gael voltou a se reconectar ao seu "eu", ao que um dia foi: "a criança adormecida que não só queria, mas precisava escrever.". Desde então, escreve.

Em 2017 seu livro “Terra Laranja” venceu os Prêmios Literários da Fundação Cultural do Pará na categoria melhor romance e será publicado pelo governo do estado. Já “A menina que engoliu um céu estrelado”, ainda sem publicação, ficou entre os finalistas na 14ª edição do Prêmio Barco a Vapor e venceu como melhor juvenil no Prêmio Cepe 2018. Além desses livros, finalizou seu primeiro romance realista, com o título de "Pare de tentar me fazer feliz".

Gael Rodrigues é um grande sonhador que, segundo ele, tem o sangue “misturado à matéria dos sonhos” e acredita que "a vida é feita de paciência e esperança.".

Confira a seguir a entrevista que realizamos com o escritor paraibano.


Entrevista: 


fotos: acervo pessoal

➡ Por que “Meio bode, meio homem”?

Gael Rodrigues: Desde pequeno eu sempre quis sair de minha cidade. Itabaiana, uma cidade de 20 mil habitantes na Paraíba. E boa parte de minha vida passei repetindo o ciclo: sair de um lugar. Espaços conquistados eram em pouco tempo preenchidos de tédio. Entendi que o problema não eram os lugares, mas eu. Então retornei ao lugar zero de minhas insatisfações. Olhar para minha cidade, meu estado, fez-me olhar para mim mesmo. Me entendi e me aceitei. Hoje aceito minhas origens e não só isso, me orgulho delas. Ter um espírito animal vai além de simbologias mitológicas. O bode representa muito bem a cultura nordestina, a cor de lá. Além de o bode ser um bicho persistente que consegue sobreviver em lugares secos e vazios. Vez ou outra você vê ele em uma encosta íngreme e se pergunta: como ele chegou lá? Bodes me fascinam. Painho me chamava de “olho de bode” quando eu era criança. Sou capricorniano. Enfim, tem um bode aqui dentro, ou um humano fantasiando o bode.


➡ O seu estado de espírito reflete, de alguma forma, em seus escritos? 

Gael Rodrigues: Somos nossos escritos. Mas o escritor não pode cair na armadilha de sempre falar de si, senão acabará se repetindo. Não há problema na repetição, afinal muitas vezes, ela incute novos caminhos, novas profundidades e revezes. Mesmo falar de si traz frequentes surpresas. Mas tento domar essa reflexão eterna sobre mim, porque quero viver outras possibilidades além de meu ego. Tento mudar gênero, público alvo, temáticas. É uma forma de fazer novas pesquisas, estudos. Criando novos mundos e personagens diferentes de mim, tenho a sorte de dar pouca importância a mim mesmo. É libertador esquecer de si nem que seja por umas horas por dia.


➡ Qual a melhor parte de se trabalhar com literatura? 

Gael Rodrigues: Pesquisar me fascina desde pirralho. Lembro de empilhar Barsas na biblioteca do colégio para resumir numa única página. Conectar informações e conhecimentos faz meu cérebro borbulhar. Lá pelos vinte eu gostava de criar narrativas. Quase como planejar um mapa de guerra. Cada reviravolta, cada elemento inesperado. Mais recentemente passei a sentir o prazer do texto em si. Das frases lapidadas. Do som que as palavras causam. Aquele parágrafo que me faz chorar não pelo que ele conta mas devido a concatenação de sílabas. Espero que a cada período surjam novos prazeres.


 É perceptível que em alguns de seus textos que há um jogo com o leitor e a tarefa de não subestimá-lo, deixando a interpretação a cargo dele, é isso mesmo? 

Gael Rodrigues: É uma tarefa das mais difíceis.  Desde sempre as pessoas interpretam o que leem da forma que melhor servem para elas. A bíblia por exemplo tem interpretação para cada tipo de freguês. O escritor mais comedido deixará claro suas intenções, seus propósitos. Nos tempos atuais, em que tudo pode ser usado contra você e problematizado, muitos escritores preferem deixar a faixa de interpretação mínima, quase como um postulado político. Eu, sinceramente, gosto das minúcias, das delicadezas, do não resolvido. Me sinto recompensado ao receber mensagens dizendo ter se identificado com um texto ou outro, mesmo eu me vendo tão diferente dessas pessoas. Essa lacuna deve ser responsável por isso. Deixo o pontilhado e o leitor completa. Sozinho ele pode refazer do jeito dele ou nem fazer mais. Mas não esquecerá do pontilhado.

 Durante a leitura de alguns de seus textos disponíveis no Medium é possível enquadrar alguns facilmente como contos e ao mesmo como crônicas cheias de memórias. Como se dá o seu processo de escrita? Há a influência de suas memórias ao escrever ficção? 

Gael Rodrigues: Passei a escrever no Medium quando recebi alta na minha terapia. Na verdade, depois de três meses de terapia ele disse para eu ir para o mundo. Despejar tudo aquilo em textos. Nesse período de 2015 e 2016 fui muito ativo nessas crônicas/contos memórias. Foi um período de cura. Percebo a potência deles porque toda semana recebo alguma mensagem de alguém que os leu, que sentiu algo, que se viu ali, mesmo sendo de três anos atrás.Mas também me senti nu. Estava exposto por escrever em primeira pessoa, citando pessoas próximas a mim.Me incomodava como algumas pessoas queriam me analisar, ou me julgar. Por pouco não deleto tudo. Deixei, mas desde 2017 só me dedico à ficção: é uma forma mais segura (mas nem tanto) de vomitar o que preciso e exercitar a alteridade.

 Enciclopédia das coisas imaginárias” é uma de suas sacadas mais geniais e divertidas lá no Medium, há a pretensão de dar continuidade? 

Gael Rodrigues:É um dos meus preferidos também. Quando escrevo um romance ou infantojuvenil passo um bom tempo mergulhado naquilo. É ótimo mas cansativo. Então fazer microtextos é uma forma de me manter na ativa e não me ver mergulhado em algo. Já tenho mais de 30 textos dessa Enciclopédia que chamo hoje de Miraginário. Também tem desenhos, pinturas e fotos. Espero um dia lançar, como um livro recreativo, desses de colocar na mesa para consulta esporádica.

 Há espaços para o “não pertencimento” de corpos diferentes que não se enquadram em alguns espaços nas obras que você escreve? Como é feita essa abordagem por você e qual a importância de falar deles? 

Gael Rodrigues: Tenho uma sequência de contos não publicados que tratam exaustivamente sobre isso. Interessante que só notei quando os vi em conjunto. Não foi intencional. Uma mulher que escorre pelo ralo e passa a viver lá. Um menino que espirra uma miniatura de si mesmo. A voz da consciência que liga para seu corpo durante a madrugada. Em todos vejo a criação de espaços fantasiosos na impossibilidade de lidar com o que está posto. O imaginário como rota de fuga e sobrevivência.

➡ O que o leitor pode esperar do seu próximo romance publicado intitulado “Terra Laranja”? 

Gael Rodrigues: Naya se dá conta de si numa praia, é por do sol. O sol nunca se põe. O tempo não passa, o lugar parece ter vida, coisa e pessoas aparecem e somem sem aviso. É um não lugar, um não-tempo. Ou é o lugar dela, onde ela pode descobrir quem é, onde esteve. É um livro triste mas bonito. Para algumas pessoas Terra Laranja pode funcionar. Espero que estejam abertas para isso.

 Como foi receber a notícia de que seu livro foi o vencedor dos Prêmios Literários da Fundação Cultural do Pará? 

Gael Rodrigues: Terminei Terra Laranja no meio de 2017. Enviei para um concurso e deixei para lá. É um livro um pouco pesado para mim. Naya vive uma história sem esperança. Eu estava numa época sem esperança. Há muito de mim lá e havia decidido não lançá-lo. Quando recebi o resultado do concurso tomei um susto. Hesitei. Até que um amigo me falou algo que me marcou: eu devia respeitar o meu eu que escreveu aquilo, naquela época. Será lançado.
 Além desse prêmio, você também foi um dos finalistas no Prêmio Barco a Vapor com a obra “A menina que engoliu um céu estrelado”. Como você enxerga os prêmios literários? 

Gael Rodrigues: É uma forma de manutenção da carreira do escritor? Escrevi A menina um mês após Terra Laranja. Foi um processo de limpeza após um livro tão pesado. Espero fazer isso após cada livro adulto: escrever algo leve e otimista. Quanto aos prêmios literários é uma forma de ser enxergado. Vim da Paraíba e de um curso totalmente disperso da arte que é Direito, num mercado cheio de escritores do eixo sul-sudeste e que se conhecem dos corredores das faculdades ou eventos literários da vida. Some-se a isso certa anti socialidade que carrego, infelizmente. Chegar a um editora requer contatos, coisa que não tenho. Já para os concursos literários você entra com texto e pseudônimo. Nem seu nome e cara está lá! Para mim é um alívio. Não estou sendo julgado pelo número de seguidores, nem se sou amigo de um ou outro escritor famoso.



Hoje saiu o resultado do Prêmio Cepe 2018, e meu livro A menina que engoliu um céu estrelado venceu na categoria Juvenil. Ele já havia sido finalista do prêmio cepe 2017 e do Barco a vapor 2018. Hoje ele termina (ou começa?) seu caminho que me trouxe tanta alegria. E num ano tão difícil para quem respira e acredita na arte essas amenidades nos dão esperança para continuar. * O curioso é que o escrevi um mês após terminar Terra Laranja (vencedor de melhor romance dos Prêmios Literários do Pará). Havia escrito um livro tão pesado e triste que queria me reenergizar. Daí a ideia de me entregar a um infantil tão cheio de amor e esperança. A literatura infantil tem gosto de final feliz antes mesmo de chegar ao fim e era disso que eu precisava. * Em A menina que engoliu um céu estrelado, Jurema passa as noites olhando e desejando o céu estrelado para si. Até que o engole. Tudo passa a ser dia, e apesar de divertido, sem a noite, em breve tudo irá secar e morrer. Ao lado do melhor amigo, o bode Damiao, embarca numa aventura onde encontra outros personagens (uma mulher- peixe de duas cabeças, um vaqueiro mudo em cima de um burro falante...) que tiveram seus desejos realizados por um homem misterioso ( o Cabeção) mas com consequências terríveis para os outros e para si mesmos. O destino da jornada é a Capital, um lugar cinza onde todos trabalham e nada mais. Lá poderá reencontrar o pai que saiu de casa há anos, e o Doutor, o homem que tirará o céu da noite de sua boca. * Sábado passado, depois de um tempo desanimado e pessimista, comecei anotações para meu novo livro infantojuvenil. Devia ser os bons ventos já soprando no meu ouvido: não desista, não desista. Não desistirei. Seguir sonhando continua sendo minha meta. * Obrigado aos amigos que continuam ao meu lado. Espero que eu seja tão bom para vocês o quanto vocês são para mim.
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  Escrever para crianças é mais difícil ou mais prazeroso? 

Gael Rodrigues: É só prazer. Provavelmente uma das minhas melhores descobertas dos últimos anos. Nossa chance de deixar a criatividade e poesia livre sem o olhar carrasco dos adultos.

➡ Atualmente você está no processo de escrita do “Pare de tentar me fazer feliz”, pode nos contar um pouco do que se trata? 

Gael Rodrigues: É meu primeiro livro realista. Sempre usei formas fantasiosas para mascarar a realidade. Símbolos, metáforas. Dessa vez quis testar algo novo. Foi um desafio. É uma ficção com toques de autoficção. Esse menino de 11 anos que mora numa cidade pequena do interior, e após a morte de um familiar, aos poucos se dá conta sobre sua própria sexualidade, não tem só um pouco de mim mas um pouco de minha história. Sinto-me mais forte e maduro artisticamente ao fim dele. Sim, terminei. E terminei próximo geograficamente de minha família. Precisei de estar perto deles para poder contar aquela história da forma mais verdadeira possível mesmo sendo de mentira.

➡ Quais são as suas influências? 

Gael Rodrigues: Brasileiros gosto muito de Clarice Lispector (a narrativa vomitada e sensorial) e Manoel de Barros (a poesia prática e imaginativa). Gosto muito do português dos escritores jovens portugueses, moçambicanos, angolanos. Gosto de ler em espanhol pela musicalidade. Escritores latino-americanos e sua capacidade imaginativa desenfreada e colorida. Gosto das minúcias e delicadeza dos asiáticos. E da monumentalidade dos americanos.

➡ Hoje você sente o sonho de ser escritor profissional realizado? 

Gael Rodrigues: Nem um pouco. Espero nunca me sentir próximo disso.. Sou movido pela insatisfação.

➡ Por fim, onde o leitor pode adquirir e saber mais sobre as suas obras? 

Gael Rodrigues: Agora em 2019 deve sair "Terra Laranja" e "A menina que engoliu um céu estrelado". "Pare de tentar me fazer feliz" está sendo analisado por uma editora. Assim que tiver datas corretas posto no meu instagram @gaelrodrigues. É lá que normalmente me comunico com o mundo.


Produção:
Pedro Silva

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1 Comentários

  1. Olá
    Adorei conhecer o autor e saber um pouco sobre ele, sua escrita e sua vida. Adoro a chance de saber mais sobre autores nacionais.

    Vidas em Preto e Branco

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